05/02/13

Aguentam, aguentam!

«….não recebo lições de moral sobre questões de sensibilidade. As que tinha a receber, recebi-as em casa, da minha família, da escola e da Igreja Católica».

       Claro que não tem de pedir desculpas, ele é assim, pensa assim. E a quem seriam pedidas essas desculpas?

     Ah, a sensibilidade da Igreja Católica! Está na cara, eles, os sem-abrigo, até entrarão no Reino dos Céus mais depressa que Ulrich, por isso não pede desculpas, o seu dia-a-dia deve ser uma preocupação constante entre fazer dinheiro e entrar no Reino dos Céus, o que só não é difícil porque há aquela coisinha de há última da hora, mesmo no último segundinho, se poder arrepender de todo os males perpetuados.

     Mas vamos lá desmontar o “se um sem-abrigo aguenta nós também aguentamos”.

     Como aguentam eles? Com fome, com frio, a dormir debaixo de cartões, quando não é só por baixo de jornais, mas até têm sorte por haver umas instituições que lhes dão uma refeição quente, ou no mínimo uma sopinha. Não há higiene, há doenças, há uma solidão imensa, não há filhos, não há mulher, há uma estupefação porque ainda ontem tinham casa, comiam bem, tinham filhos e mulher, e família, e casa de banho, e água, e eletricidade, e tantas coisas que agora nem pensam que já tiveram, porque se pensarem dão em doidos desvairados.

     E então aqueles que não aguentaram e que morreram?

     Morre-se por não se aguentar e disso, convenientemente, Ulrich esqueceu-se. Morre-se de dor, e morre-se de frio, e de fome, e de solidão, e de doença, e de podridão, e de ninguém querer saber, porque todos se afastam quando passam por um deles, incomodados, que o melhor é nem olhar talvez até se pegue, e morrem porque pensam que eles aguentam.

    Quando foi feita esta afirmação, lembrei-me revoltada de duas coisas:

    1ª – Os judeus nos campos nazis. Aguentaram imensos, por isso Ulrich se sente tão à vontade. Os famélicos, os gélidos, os sem nada aguentam muito, aguentam o que nós nunca aguentaríamos…aguentávamos pois, aguentávamos como muitos dos judeus aguentaram. Porque é bom não esquecer que não foi só nas câmaras de gás que morreram judeus, morreram também, muitos e muitos, de fome, de frio, de doenças de desidratação, de diarreia.

    2ª – Que raio de jornalistas temos nós que se calam depois de uma afirmação destas? Então não há perguntas, não há comparações a fazer? Quando ele disse que aguentaria, não lhe perguntaram como? Ninguém lhe perguntou por todos aqueles que não aguentam?

Que vergonha!