«….não recebo lições de moral sobre questões de
sensibilidade. As que tinha a receber, recebi-as em casa, da minha família, da
escola e da Igreja Católica».
Claro que não tem de pedir desculpas, ele é assim, pensa
assim. E a quem seriam pedidas essas desculpas?
Ah, a sensibilidade da Igreja Católica! Está na cara,
eles, os sem-abrigo, até entrarão no Reino dos Céus mais depressa que Ulrich,
por isso não pede desculpas, o seu dia-a-dia deve ser uma preocupação constante
entre fazer dinheiro e entrar no Reino dos Céus, o que só não é difícil porque
há aquela coisinha de há última da hora, mesmo no último segundinho, se poder arrepender
de todo os males perpetuados.
Mas vamos lá desmontar o “se um sem-abrigo aguenta nós
também aguentamos”.
Como aguentam eles? Com fome, com frio, a dormir debaixo
de cartões, quando não é só por baixo de jornais, mas até têm sorte por haver
umas instituições que lhes dão uma refeição quente, ou no mínimo uma sopinha.
Não há higiene, há doenças, há uma solidão imensa, não há filhos, não há
mulher, há uma estupefação porque ainda ontem tinham casa, comiam bem, tinham
filhos e mulher, e família, e casa de banho, e água, e eletricidade, e tantas
coisas que agora nem pensam que já tiveram, porque se pensarem dão em doidos
desvairados.
E então aqueles que não aguentaram e que morreram?
Morre-se por não se aguentar e disso, convenientemente,
Ulrich esqueceu-se. Morre-se de dor, e morre-se de frio, e de fome, e de
solidão, e de doença, e de podridão, e de ninguém querer saber, porque todos se
afastam quando passam por um deles, incomodados, que o melhor é nem olhar
talvez até se pegue, e morrem porque pensam que eles aguentam.
Quando foi feita esta afirmação, lembrei-me revoltada de
duas coisas:
1ª – Os judeus nos campos nazis. Aguentaram imensos, por
isso Ulrich se sente tão à vontade. Os famélicos, os gélidos, os sem nada
aguentam muito, aguentam o que nós nunca aguentaríamos…aguentávamos pois,
aguentávamos como muitos dos judeus aguentaram. Porque é bom não esquecer que
não foi só nas câmaras de gás que morreram judeus, morreram também, muitos e
muitos, de fome, de frio, de doenças de desidratação, de diarreia.
2ª – Que raio de jornalistas temos nós que se calam
depois de uma afirmação destas? Então não há perguntas, não há comparações a
fazer? Quando ele disse que aguentaria, não lhe perguntaram como? Ninguém lhe
perguntou por todos aqueles que não aguentam?
Que vergonha!